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Dorminhoco

Só assuntos sérios. Só quando estou acordado.

Dorminhoco

Só assuntos sérios. Só quando estou acordado.

Maio 30, 2018

Um livro que existe

 

Saiu este mês um livro que abalou a ordem das coisas. Este livro parou, por completo, o meu mundo. Também parou o mundo de algumas outras pessoas. Não de todas. Mas de bastantes. De tantas que há pessoas que eu não conheço de lado a nenhum a enviarem-me mensagens sobre este livro.

 

Tudo isto é um pouco estranho, claro. Os livros não costumam fazer parte da actualidade. O livro, enquanto objecto, é habitualmente iluminado pelo candeeiro de mesa - e não pelos holofotes. Não é como a bola de futebol, que, chutada de uma maneira, da maneira oposta, ou de outra maneira qualquer, proporciona sempre momentos dignos da actualidade. Bem pelo contrário, os livros são habitualmente postos de parte da conversa do dia. As razões para isso são perfeitamente aceitáveis. A principal, por exemplo, é bem conhecida: para comentar um livro é quase sempre necessário lê-lo primeiro.

 

Talvez seja por isso que este livro se tenha tornado parte da actualidade. É certo que as palavras escritas nas suas 296 páginas são envolventes e autênticas: “de uma inteligência desarmante mas discreta” (Diário de Notícias). Mas o mais fascinante é que nem seria necessário ler este livro para o comentar. Este é um livro que se transcende a si próprio. “É uma celebração da vida" (Expresso), de “um homem íntegro e inteiro” (Visão). É uma voz, vinda do alto de uma montanha (ou da frescura de uma caipirinha à beira-mar...), que diz: “vivi!” Mais que um mero livro, esta é uma obra em que a alegria proporcionada ao leitor é tanto a das suas palavras quanto a da sua existência. O livro afirma “vivi!”. E o leitor, embevecido com o que folheia, exclama: “existe!”.

 

O livro de que falo chama-se Não Respire. Sou totalmente suspeito por falar bem dele. É o último livro do meu pai. Um livro que ele acabou de escrever dias antes de ser internado pela última vez. É um livro cheio de saudades. Um livro que diz até já. Mas é, acima de tudo, um livro que existe. Por estes dias, vai também marcando a actualidade. E é uma alegria vê-lo por aí, nas livrarias, na Feira do Livro, nas mãos das pessoas. Este livro é uma alegria que o meu pai me deixou - a mim, e a todos os que, de vez quando, dizem que gostam de ler o que ele escreve. Ainda bem que existe!

 

 

Abril 30, 2018

O problema americano do inimigo

 

A ausência de inimigos é uma questão com que a Administração Trump se continua a debater, no plano externo, mais de um ano depois de eleita. Não é uma questão insignificante. Em política, é essencial ter inimigos que sirvam de bode expiatório para os problemas que certa administração não pode – ou não consegue – resolver. O inimigo externo é essencial para que os efeitos políticos e eleitorais de problemas internos sejam amenizados. É aquela ameaça à unidade nacional que pode manter e amplificar o eleitorado conquistado, mobilizando o povo para uma causa que é, em si mesma, vista como “de sobrevivência”. (E que, no caso americano, é também necessária para satisfazer a indústria do armamento.) A sua ausência é um problema que precisa de ser resolvido. 

 

Percebendo o cansaço mediático e social em relação ao Médio Oriente depois do envolvimento em 4 guerras extenuantes, Donald Trump teve esperança de mudar o centro das atenções para a Ásia. O seu mais recente candidato a inimigo externo foi, então, a Coreia do Norte. Tinha tudo para dar certo: um “louco” mauzão como líder, um “reino eremita” que convoca a imaginação pública, e armas de destruição maciça, veja-se bem, comprovadas.

 

Aquilo com que Trump não contava era que os exóticos norte-coreanos fossem, afinal, pessoas, como os americanos, que podem ter ideias inteligentes. A recente reunião de sucesso entre líderes norte e sul-coreanos foi a cereja no topo do bolo de uma inteligente movimentação diplomática norte-coreana que deitou por terra as aspirações de Trump. Os EUA continuam a ser o principal adversário da Coreia do Norte, que não dispensa um bom inimigo na sua propaganda interna. Mas a Coreia do Norte, agora, já não pode ser o principal inimigo dos EUA – isso implicaria os EUA estarem contra os desenvolvimentos rumo à pacificação da Península Coreana, contra a prometida abolição do programa nuclear, e principalmente contra um país que é o novo amigo do seu aliado, a Coreia do Sul. 

 

As cartas foram bem jogadas pelo Marechal Kim Jong-Um, que ganhou um amigo, sem perder qualquer inimigo. Do mesmo sucesso não pode gabar-se Donald Trump, que continua a zeros. O presidente americano bem podia contar com uma distracção externa, dados os sucessivos problemas internos da sua administração. Mas por agora, não há inimigo que o ajude. 

Abril 13, 2018

As causas de Rio

 

Vasco Pulido Valente, numa entrevista concedida ao DNA, em 2001:

DNA - A coligação entre o PS e o PSD podia resolver hoje o atraso de Portugal?

VPV – Vou dizer uma heresia política, mas acho que sim. A única maneira de se fazerem as grandes reformas é um novo bloco central...

 

Rui Rio, esta quarta-feira, em Santa Maria da Feira:

“Colocar o interesse de Portugal à frente é justamente estar disponível para fazer com os outros aquilo que só com os outros consegue ser feito.”

“Os partidos devem entender-se para fazerem um conjunto alargado de reformas.”

 

Continua Vasco Pulido Valente:

VPV – ..., o grande problema é outro.

DNA – Quem o dirige?

VPV – Como é óbvio. Quem será capaz de o dirigir? (...) Precisamos, num sentido figurado, de “homens providenciais”. Os próprios partidos criam cenários para que surjam homens com uma aura de poder, mas os “homens providenciais” trazem sempre grandes causas. A revolução comunista para o dr. Cunhal, a democracia para o dr. Soares, a desmilitarização do regime e o direito da direita a governar para o dr. Sá Carneiro, a regularização económica para o dr. Cavaco. Foram as quatro grandes causas do pós-25 de Abril.

 

Gostava de continuar a sequência e introduzir aqui um excerto de Rui Rio a falar sobre as grandes causas que se propõe a defender. Não é fácil. Sobre a importância de reformas e a utilidade de um bloco central, já vimos que Rio está de acordo com Vasco Pulido Valente. Mas quanto à sua base teórica, o líder do PSD não tem propriamente aberto o jogo. A pergunta permanece: ao que vem Rui Rio exactamente? Qual é a sua “grande causa”? Será ele, no final das contas, um "homem providencial"?

Abril 07, 2018

Sobre a questão de levantar cedo

 

Sei de pessoas que ainda hoje acordam cedo e não entendo por que o fazem. Provavelmente, não são dorminhocos como eu. Eu gosto muito de dormir e faço parte dos que acreditam que são necessárias razões fortes para se sair da cama. Pessoalmente, só aceito mesmo uma: o almoço.

 

O almoço é uma actividade nobre. Na minha opinião, deveria estabelecer o parâmetro de razoabilidade para se encarar a luz do dia. Acordar só porque é de manhã e “já são horas” carece de vida. É um acordar branquela. Pelo contrário, acordar para almoçar é como entrar no Lux às 4 da manhã. A luz é doce, pincelada de violeta; a comida, como a música, uma nuvem fofa, que acama a nossa chegada.

 

Além disso, acordar para almoçar permite a fuga à pior das refeições: o pequeno-almoço. Nunca algo de mau proveio de uns jaquinzinhos com arroz de tomate, mas sei de vários divórcios concretizados entre torrada e chá preto. Por isso, mesmo quando vou para a cama cedo, faço sempre questão de dormir pelo menos até ao meio-dia e meia. Há refeições cujos perigos não valem o nosso querido sono.

 

Como se não bastasse, acordar para almoçar é ainda um processo instintivo. O cheiro de uma empada de aves acabada de sair do forno desperta a curiosidade. Abre-se um olho. Segue-se o chamamento até à cozinha. Quando se dá por ela, já não há nada a fazer: estamos acordados. 

 

Março 29, 2018

A expulsão de diplomatas russos é precipitada

 

Tal como a maioria dos europeus, estou convencido de que a Rússia é responsável pelo envenenamento de Sergei e Yulia Skripal. Acho que tem tudo para ser verdade – o motivo faz sentido, o método coincide e o comportamento encaixa num padrão de assassinatos já conhecido. O problema é que, para reagir de forma assertiva e justa, as convicções não chegam. É preciso saber o que se passou.

 

Mesmo que o Novichok tenha vindo da Rússia (como é provável), continua a não ser certo o papel do estado russo no ataque. Se o Kremlin teve algum envolvimento, então estamos perante uma participação em crimes gravíssimos. No entanto, se o Kremlin não teve nada que ver com a ordem para matar (a hipótese de grupos alheios ao estado se terem apropriado do Novichok é perfeitamente válida), então trata-se de negligência da sua parte – pois o armazenamento, a segurança e o desmantelamento de agentes químicos não são assuntos para brincadeira. Ambas as hipóteses – quer a participação no crime, quer a negligência – nos levam a atribuir culpas ao estado russo. Mas estas são distintas e cada uma pede uma resposta adequada. Caso o Kremlin não esteja envolvido e o ataque tenha tido origem, por exemplo, nos oligarcas e nas redes de crime organizado, a expulsão de diplomatas é uma medida desproporcional e ineficaz. Nesse caso, seria bem mais apropriada a aprovação de um novo pacote de sanções. 

 

Claro que se percebe a decisão de vários países ocidentais de expulsar diplomatas, até porque há um timing político e mediático para acções deste nível. Mas esta é necessariamente uma decisão precipitada, pois corre o risco de não ser apropriada ao tipo de responsabilidade do Kremlin pelo envenenamento. Para um juízo pautado pelo bom-senso, as conclusões finais das investigações em Salisbury e na Rússia seriam necessárias. Assim sendo, a decisão portuguesa de chamar o seu embaixador para consultas é tecnicamente mais adequada do que a dos seus parceiros. Mesmo que seja problemática a vários outros níveis.

 

 

Março 26, 2018

Uma geração sem Bairro Alto

 

Não sei se alguma vez conheci o Manuel Reis. Acho que sim, quando era pequeno. Infelizmente, antes dos meus 14 anos não me interessava nada conhecer a maior parte das pessoas que o meu pai me apresentava. Por isso, não me lembro.

 

Tenho pena. Tudo o que sei sobre ele e o seu trabalho, sei através do meu pai. Sei que o Manuel Reis e mais uns quantos bravos agitaram as coisas nos anos 80. Sei que com sítios como o Pap’Açorda e o Frágil lançaram as bases para um cocktail urbano tremendamente difícil de confecionar: uma identidade. A noite lisboeta – ou se a tratarmos pelo nome da altura, o Bairro Alto – teve uma personalidade que permite, àqueles que a viveram, ainda hoje reconhecerem-se na rua. Afinal de contas, eles estiveram lá.

 

Não é difícil ser saudosista em relação a esse Bairro Alto que nunca foi meu. Nós, os jovens de hoje, não temos um Frágil. Não há um Targus onde possamos encontrar a versão jovem do meu pai e dos amigos dele. O Bairro Alto há muito que perdeu o charme, e o único sítio que poderia realmente ser nosso, o novo Cais do Sodré, foi tomado por uma mistura de turistas, hipsters que têm “uns projectos” e CEO’s de start-ups com muito start e pouco up. Até o Pap’Açorda se mudou para lá – e já não é a mesma coisa.

 

Claro que muito mudou e melhorou. Mas não há um lugar ao qual a nossa geração possa chamar "casa" da mesma maneira que os de 80 chamavam ao Bairro Alto. Sei que o novo PRD, o novo MEC, o novo NMG, o novo Quevedo e os outros andam aí algures. Mas às vezes não tenho a certeza se sei onde os encontrar. Talvez eu seja despistado. A verdade é que sempre pensei que seriam pessoas como a Manuel Reis a indicar-me a morada certa – ou mesmo a construir uma nova. Hoje ficou mais difícil.

 

Março 22, 2018

O Facebook não é a notícia

 

Muito se tem falado sobre a Facebook, dada a sua importância no caso Cambridge Analytica. O problema é que o que é relevante no caso Cambridge Analytica não se prende com a Facebook. O caso Cambridge Analytica é sobre o processo de campanha eleitoral moderno - especialmente no que toca à influência das consultoras políticas. 

 

É raro termos a oportunidade de espreitar o funcionamento destas consultoras na prática e é esse o principal valor do brilhante trabalho dos jornalistas do Observer e do Channel 4: revelações de tal forma gráficas que trazem o assunto para a ordem do dia. Trata-se de um assunto importante, especialmente quando se pensa na relação entre o financiamento e regulamentação das consultoras e o impacto eleitoral das mesmas. A Cambridge Analytica só pôde desenvolver o seu trabalho graças ao investimento multi-milionário da família Mercer, cujo consultor político, Steve Bannon, foi chefe de campanha de Donald Trump. O dinheiro investido pelos Mercer não entra para a conta oficial dos gastos da campanha (que é limitado pela lei) mas é nem por isso deixa de ser legal (graças às Super Pacs – grupos independentes que podem fazer campanha desde que não harmonizem as suas acções com as do candidato). 

 

Nada disto é novidade. Mas dado o valor empírico das informações reveladas, esta seria a ocasião perfeita para se relançar o debate sobre a regulamentação e o financiamento das campanhas eleitorais. Em enquadramentos como o das presidenciais americanas, a competição é facilmente mantida, pois só há duas forças em jogo, ambas bem estabelecidas - Democratas e Republicanos. Mas noutros países, como alguns daqueles em que opera a Cambridge Analytica, o caso não é assim tão simples e facilmente a competição política se pode tornar ainda mais desigual do que tradicionalmente já é.

 

big data, a Facebook e consultoras como a Cambridge Analytica fazem parte do processo eleitoral moderno. O desafio é enquadrá-los na sociedade democrática, sem que a palavra democrática se torne um mero adereço retórico. É este o desafio que devia estar no centro das atenções durante estes dias em que se fala do caso Cambridge Analytica. Ninguém precisa de mais uma discussão trivial sobre os perigos do Facebook.

Março 21, 2018

Um blog muito enfadonho

 

Sei bem que 22 anos não é idade para se perder tempo a comentar assuntos sérios. Contudo, um magnífico cocktail que mistura juventude, excesso de tempo livre e a empáfia de estudar em universidades britânicas com nomes pomposos que, por vezes, usamos em latim, permite-me a ilusão de que tenho coisas para dizer. E com a presunção com que nós, os jovens de hoje, abordamos qualquer assunto – qualquer issue –, não planeio fazer mais nada: vou mesmo escrevê-las. 

 

Não estou aqui para enganar ninguém. Desejo prevenir desde já o incauto cidadão daquilo a que me proponho: escrever sobre assuntos importantes (mas raramente entusiasmantes) suscitados pela actualidade, dando as minhas perspectivas, sem com isso acrescentar rigorosamente nada de relevante ao que é dito por outros comentadores mais experientes, mais sábios e mais inteligentes do que eu. O título deste post não é irónico. Esta será mesmo uma página aborrecedora.

 

Talvez a identidade deste blog resida precisamente nessa peculiar falta de propósito e interesse. A única razão por que este blog é escrito é que eu, o autor, posso fazê-lo. Não existe aqui sequer uma manifestação de amor à liberdade. Não, se eu não pudesse escrever este blog, não teria qualquer problema com isso. Este blog não é um uso orgulhoso dos meus direitos. É só o exercício da minha vontade. Que não é sequer uma vontade muito grande. Mas que, como sou guloso, gostava de satisfazer de qualquer maneira. 

 

Vou tentar. Bem-vindos ao Dorminhoco.